Descrição

Este projeto está intimamente ligado à criação artística do ator, suas abordagens, reflexões e métodos. Ele está no âmbito da pesquisa do corpo cênico, de seus movimentos e de sua continua (re)significação perante quem o assiste e, por sua vez, da sua própria (re)organização.
Para isso, cartografei meu próprio processo de aprendizagem e criação através dos diálogos entre o método de educação do movimento, Body Mind Centering®, inicialmente desenvolvido pela americana Bonnie Bainbridge Cohen, das formas de extração e codificação de matrizes corporais mapeadas por Renato Ferracini, e dos princípios da performance estudados por Renato Cohen.
Assim, o desafio desta pesquisa foi a utilização do material perceptivo, proveniente da prática corporal, para a elaboração cênica. Ou seja, transcrever as sensações em matrizes codificadas, visando uma apresentação final em que este procedimento fosse (in)visível.

PESQUISA DE MESTRADO
CONCLUÍDA
ORIENTADOR: PROF. DR. ARMANDO SÉRGIO DA SILVA

19.11.09

O pensamento do ator

Foram dois anos e meio de pesquisa e documentação que expandiram minha consciência em relação ao pensamento do ofício do ator. Tocada por todas essas experiências, acredito que a capacidade sutil e profunda de convidar a expressividade das células através do processo de corporificação nos conduz, antes de mais nada, à transformação e ao acolhimento.
Ao compreender que existem pensamentos e formas de expressão diferentes em nós mesmos, entendemos que podemos escolher. Olhar por outro ângulo, sentir de outro jeito, tomar outras atitudes. O outro se torna parte de nós mesmos. Vemos que a identidade está na alteridade. Ana se transforma ao ver o outro.
O processo de preparação de Ana-me contaminado pelo BMC®, permitiu a cartografia de meu próprio processo de aprendizagem e de minhas criações. Quais são as minhas tendências expressivas? Por qual caminho crio? Sempre faço a mesma coisa com formas diferentes? Minha visão de mundo está apoiada em que sistema? O que é preciso balancear? Porque eu reagi desta forma a este estímulo?
Acredito que esses questionamentos surgem porque o método pede a percepção ativa e sem julgamento sobre os grãos de areia que se movem ao sabor do vento, do pensamento. Todas as pequenas células têm sua especialidade e sua poesia. Os pensamentos sistêmicos possuem padrões de expressividade singulares e limitados, e essas características não são melhores ou piores, apenas são. Portanto, deve-se escolher.
Antes de ser uma técnica, o BMC® é uma prática que corporifica a observação, a atenção, a intenção e a ação. O conhecimento produzido por essa prática pode ser utilizado em técnicas de interpretação existentes, pois trata-se de alinhar intuição e forma, percepção e ação. Nada é excluído, tudo é observado, acolhido, sentido e “agido”.
Desta maneira, exigiu-se de mim uma escolha ética, que tem heranças na fé defendida por Stanislávski; na contaminação e na violência exigida por Artaud; na comunhão ritualizada por Grotowski; na harmonia entre corpo, pensamento e sentimento pedida por Brook; na ação política enfatizada por Brecht; na hibridicidade e abertura praticada por Renato Cohen; na seriedade e constante busca realizada pelo Lume Teatro; na simplicidade e na coragem defendida pelo professor Armando Sérgio da Silva.
Então, nesse caso, busquei em mim mesma as possibilidades de criação que, junto ao público, sejam contínuas, permeáveis, nômades, mutantes. E, essa dissertação é a sistematização de parte desse processo constante.
Quando Artaud abre o texto “Um Atletismo Afetivo”, admitindo que existe,“no ator, uma espécie de musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas do sentimentos” (ARTAUD, 1999, p. 151), ouso localizar o pensamento do ator: corporificar o encontro. Ou seja, o ator, na sala de trabalho, capacita-se em suas diferentes potências de sentir e agir, considerando seu corpo um espetáculo em si mesmo. E, sendo um espetáculo é, também, platéia, técnico, luz, som, etc. Ele atua, assiste, ilumina e esconde, escuta e ignora a si mesmo. E essas propriedades não estão, apenas, na musculatura. À luz do BMC®, os sentimentos estão nos ossos, nos órgãos, nas glândulas, no sangue, na linfa... e, inclusive, na memória de estruturas que compuseram o corpo no estágio embrionário como a notocorda.
Assim, no processo cênico em BMC®, o corpo-subjétil se pensa e se lança na corporificação de suas próprias multiplicidades. Cabe ao ator, “tomar consciência dessas localizações do pensamento afetivo” (ARTAUD, 1999, p. 157) e extrair resultantes que funcionam como marcas, materializações, catalizadores, trampolins dos bens imateriais atorais. É através da análise sobre essas resultantes que o ator pode perceber seus limites e suas trajetórias, e traçar novos objetivos com novas escolhas.
Se olharmos com atenção o processo, percebemos que as matrizes não passaram por repetições para se tornarem código, ou a codificação não passou pela repetição - caminho mapeado por Ferracini em sua tese de mestrado: “Repetição e enclausuramento dos micro-elementos e das microtensões de cada ação física orgânica, partindo do pressuposto de que o corpo é memória: essa é a proposta do Lume para a codificação das ações físicas”. (FERRACINI, 2001, p. 125)
Os códigos já estavam contidos nas próprias matrizes. Ao estipular portas de entrada (variáveis e inerentes a cada estado corporal) estabelecia, também, a substância que lhes conferia a forma. Por exemplo, se os gestos resultaram do pensamento das mãos, eles já são codificados, porém abertos. A matriz “gestos” guarda em si o que a motivou, podendo ser formalmente transformada. Ela pode ser apoiada por outro sistema, dependendo do espaço/tempo em que será (re)criada.
As experiências das apresentações do espetáculo Ana-me me mostraram que essas matrizes suficientemente abertas e apropriadas, possibilitam a maleabilidade da escolha durante a cena. Devido à corporificação profunda dessas matrizes pude modificá-las de acordo com minhas sensações presentes, reagindo ao humor do ambiente e do público. Com isso, o roteiro do espetáculo se abriu para novas experimentações estéticas, conservando sua macro-estrutura.
Outro aspecto relevante que permeou esse processo foi a necessidade de percorrer esta jornada com princípios do BMC® dentro de uma pedagogia teatral. E aqui adotei a “Oficina da Essência” que desenhou as margens e conduziu os focos de criação, delimitando as fases da preparação. Pois a prática BMC®, como disse anteriormente, é um método de educação do movimento e pode ser utilizado dentro de diversas áreas do conhecimento.
Por fim, ressalto o caráter preparatório dessa pesquisa, que uniu o trabalho do ator sobre si mesmo e a preparação da personagem. Desta união, o processo de preparação de Ana guiou meu trabalho como atriz-pesquisadora-pessoa.
Ana vive em seu cotidiano e, através de um estímulo, ela tem a consciência da vibração do espaço ao seu redor, dilatando seus sentidos, atualizando memórias e se percebendo. Depois disso, Ana pode agir e criar ações no mundo.
Eu vivo meu cotidiano - fecho meu apartamento alugado na cidade de São Paulo; pego ônibus e trânsito; corro e chego ao ensaio. Lá, me preparo, pois diferentemente de Ana, já tenho a intenção da epifania e, através de minha sensibilidade e objetivo no ato da criação, percebo meus próprios estados corporais, minhas dilatações sensíveis. E, a partir daí, as condenso, organizo, registro e escolho. Crio portas de entrada que as ativem. Assim, posso agir, elaborar e estudar ações no espaço, corporificando encontros.
Desta forma, concluo que o processo de corporificação entendido pelo método BMC® potencializa e dinamiza a criação de um corpo-subjétil-poético-cênico.

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